A BELEZA DA ORAÇÃO CONSISTE NO FACTO DE QUE O ABRIR DO NOSSO CORAÇÃO É TÃO NATURAL COMO O DESABROCHAR DE UMA FLOR. PARA QUE UMA FLOR ABRA E FLORESÇA BASTA ESPERAR; PORTANTO, SE ESPERARMOS, SE NOS AQUIETARMOS E ASSIM PERMANECERMOS QUIETOS E SILENCIOSOS, O NOSSO CORAÇÃO ESTARÁ INEVITAVELMENTE ABERTO E O ESPÍRITO BROTARÁ DENTRO DO NOSSO SER. FOI PARA ESTE FIM QUE FOMOS CRIADOS. JONH MAIN, OSB (1926-1982)

domingo, abril 30, 2006

Entrevista ao Father Laurence Freeman, OSB

Conversa com vista para…
Laurence Freeman (OSB)

(Maria João Seixas, O Público, Lisboa, 23 de Abril de 2006)

Rumei a Cascais com uma curiosidade serena. Ia alegre pela oportunidade, trazida por mão amiga, de me encontrar com o monge beneditino Laurence Freeman, durante a sua curta estadia entre nós. O que dele e do seu trabalho conhecia caucionavam a minha serenidade e alegria. Na grande sala, o padre Laurence segurava nas mãos um livro, um pesado volume sobre o Tibete e, sorrindo a folhear a obra, assistiu ao café que me foi oferecido, aguardando, sem impaciência, que o sinal para que a entrevista começasse fosse dado. Gostaria de ter podido conversar mais, à margem da fita gravadora, mas o tempo devia ser aproveitado ao segundo. Director da WCCM – World Community for Christian Meditation (Comunidade Mundial para a Meditação Cristã), com sede em Londres, o padre Laurence veio a Portugal orientar um retiro de dois dias e participar no painel dedicado ao “Louvor da Beleza – um caminho para a Paz”, patrocinado pelas Fundações Cuidar o Futuro e Calouste Gulbenkian. É um homem de trato delicado, com uma presença física forte, de olhar perspicaz e bem-humorado, mas é sobretudo alguém habitado por uma fé poderosíssima e por uma consciência, militante, do que há a fazer com essa fé para aliviar os outros das suas mágoas e exaltá-los a celebrar a vida. Com um raro domínio da palavra, compõe o seu discurso de um modo simples e límpido, de quem sabe que é também pelo verbo que os caminhos podem ser encontrados e traçados.

MJS – Padre Laurence, diga-me quem é.
LF - Sou um monge, não um muito bom monge, mas, seguramente muito, um monge. São Bento disse que um monge é simplesmente alguém que procura Deus. Creio ser isso o que tento fazer.

MJS – Diz-me então “ser” o que tenta fazer – alguém que procura Deus. Mas eu procuro aqui saber mais de si…
LF – Penso que o modo como faço isto que faço, ser um monge, alguém que procura Deus, vai mudando com os anos, com os diferentes períodos da minha vida, com as diferentes situações em que me encontro e com as novas relações que vou estabelecendo e em que me envolvo. Não penso que esgoto a minha identidade com o que faço, embora me encontre a mim-próprio, como sou, nisto que faço.

MJS – Sentiu cedo essa necessidade da procura de Deus?
LF – Desde criança. Fui criado num ambiente religioso, onde nunca me senti pressionado ou forçado, mas onde o sentimento de religiosidade era tão absolutamente natural que o absorvi, também com grande naturalidade, desde muito cedo. Vivi a minha infância com uma devoção intensa, mas, entrado na adolescência, o aspecto dos serviços religiosos passou a ser menos importante para a procura de Deus. Afastei-me, nessa altura, da Igreja, sem estar zangado ou fazer qualquer rejeição, mas porque as obrigações externas do culto me pareceram, então, pouco relevantes. Olhando para trás, julgo que o facto de me ter alheado dessa dimensão das práticas religiosas não me desviou da procura de Deus. Fazia-o de outras maneiras. À medida que fui crescendo e que a vida foi ficando maior e com novos desafios, a procura de Deus passou a ser mais inclusiva e fui-me dando conta que essa procura é, essencialmente, a procura de nós próprios, do nosso verdadeiro “eu”, bem como do verdadeiro “eu” dos outros com quem nos relacionamos. A procura de Deus passou também a ter mais a ver com a exigência de justiça nas relações que ia estabelecendo e na sociedade em que vivia, bem como no mundo em geral. Ou seja, com o andar dos anos, a procura foi-se tornando em mim cada vez mais como um princípio unificador, apesar de me sentir confuso com a mudança das definições que me iam surgindo como mais apropriadas. Até a maneira de definir Deus começou a transformar-se.

MJS – É possível definir Deus?
LF – Acho que sim, desde que não se fique agarrado a uma única definição, porque desse modo corre-se o perigo de se passar a ser fanático ou fundamentalista. Para mim, a mais universal, mais profunda, simples e bela forma de definir Deus, é a que diz - Deus é Amor. No conceito de Amor encontra-se tudo o que Deus é - Verdade, Beleza e Bem.

MJS – Ao eleger essa formulação, encontra-se com a tríade platónica.
LF – Claro, mas se Platão é um dos pilares fundadores do pensamento cristão, da tradição mística cristã e de toda a filosofia ocidental! Estive há pouco tempo numa universidade americana a dar um curso sobre história do misticismo cristão e comecei as aulas justamente com a “alegoria da caverna” de Platão. Perceber como os homens estão prisioneiros naquela caverna a olhar para as suas sombras projectadas nas paredes, a tomá-las como se fossem a realidade por desconhecerem que são apenas sombras criadas pelo fogo que arde atrás das suas costas, até que alguém (o “profeta” libertador) lhes explica que o que vêem são só sombras e os impele para o difícil passo de deixarem a caverna e virem até à luz do dia onde, apesar de incandiados pelo primeiro contacto com a claridade, poderão ver as coisas como elas realmente são, é uma grande lição. Esta lição da “metáfora da caverna” sobre a via a percorrer na busca do verdadeiro sentido do conhecimento, contribuiu para moldar profundamente o pensamento ocidental.

MJS – Que novo contributo, essencial para a transformação da história do pensamento ocidental, foi trazido, no seu entender, pelo Cristianismo?
LF – Penso que foi um novo modo de amar, um novo modo de compreender o significado do ”amor”. O Evangelho fez explodir a ideia, tradicional até então, de que basicamente se amava em conformidade com os limites da nossa cultura, da nossa agenda, da nossa raça. A história do bom samaritano é uma parábola chave do Evangelho, porque nos revela que afinal somos livres para entender que o nosso vizinho é aquele que escolhemos para nosso vizinho, e que a resposta a dar, especialmente aos que sofrem e precisam de auxílio, tem de vir intuitivamente da nossa humana e natural compaixão. Neste sentido, aquilo que o Cristianismo trouxe como contributo novo para a consciência humana foi a universalidade do valor do amor, a ideia de que cada ser humano é igualmente amável. Para mim, para eu ser completamente humano, é indispensável que corresponda ao desafio desse valor em relação a todas as pessoas. O valor e o significado do outro como “pessoa”, passaram a depender da nossa maneira de reconhecermos nele essa prerrogativa de ser amável, de poder ser amado, de um modo único, insubstituível, que lhe pertence só a ele, porque faz parte integrante da sua inconfundível entidade. Pensar nestes termos, acreditar neles, é qualquer coisa que nos obriga, hoje em dia, a lutar pela sua preservação no interior da nossa cultura, porque passámos a ser uma sociedade de “indivíduos”, separados uns dos outros, embora vivendo politica, social e economicamente no interior de um “colectivo”, controlado, mais e mais, por forças externas. Viajo muito e dei-me conta, nos últimos anos, que deixei de ser um “viajante”, ou um “passageiro”, passei a ser um “utente”. As saudações de boas-vindas no início de uma viagem de comboio ou de avião começaram já, em muitos percursos e companhias, a dirigir-se , expressamente, aos “senhores utentes”. A ideia de se ser um viajante, alguém que se desloca de um sítio para outro, com tudo o que isso representa de mágico e de maravilhamento, está a perder-se; agora somos apenas alguém que compra um bilhete e um serviço. Esta identificação crescente da nossa identidade com o estatuto económico que possuímos e com as relações comerciais que estabelecemos é, do meu ponto de vista, uma ameaça e um empobrecimento. Nos Estados Unidos da América, à pergunta de um inquérito – “O que é que mais gosta de fazer nos tempos livres?”, a maioria das respostas foi – “Ir às compras!”. O consumismo, como se está a viver na actualidade, afasta-nos do reconhecimento do outro (e de nós próprios) como “pessoa”. A ideia da “persona”, amável na sua entidade própria e única, tenderá a desaparecer, se aqueles que acreditam no seu valor não derem o exemplo, se em todas as circunstâncias das suas vidas não lutarem concretamente pela sua exteriorização e prática. O Evangelho e as nossas tradições espirituais lembram-nos isso continuamente, e forçam-nos a recuar à verdade de sermos “pessoas” e não meros “indivíduos”. Não somos descartáveis, como este gravador. Como “pessoas”, somos únicos, e o que nos define e explica são as relações que mantemos uns com os outros, com tudo o que nos rodeia, com o legado que recebemos dos que antes de nós viveram.

MJS – A sua “pessoa” abraçou uma religião, a católica, e escolheu uma ordem particular, a beniditina. As regras da sua religião e da sua ordem não criam limites ao estabelecimento de relações, verdadeiramente universais e igualitárias, com todos aqueles com quem se cruza?
LF – Percebo a sua pergunta, que levanta a questão paradoxal da pertença, obediente, a um conjunto preciso de princípios, por um lado, e do relacionamento, natural e próximo, com quem nada tem a ver com eles, por outro. Não é fácil explicar, mas vou tentar. O que quer que seja em que uma pessoa se concentra, essa concentração contribui para aprofundar a consciência de si próprio. O paradoxo está justamente aqui – quanto mais uma pessoa se concentra, mais se expande. Ao fazer um determinado número de escolhas na minha vida, como por exemplo ser monge beniditino, experimentei (e continuo a experimentar) uma enorme liberdade que ultrapassa em muito as limitações das regras que aceitei seguir e cumprir. Todos temos limitações, e é só quando as aceitamos (comportando-nos normalmente dentro do seu quadro de referências) que as conseguimos transcender, o que acontece em momentos de graça, ou de uma particular beleza. Creio que as melhores coisas que nos acontecem na vida surgem de forma inesperada, gratuitamente, em pura dádiva. Por exemplo, já disse que sou alguém que procura Deus, mas, se estiver permanente e conscientemente entregue a essa busca, é provável que não seja desse modo que O encontre. Devemos estar prontos para reconhecer e acolher os dons, gratuitos, que a vida nos pode oferecer. Ao sabermos aceitar as limitações e as estruturas de uma específica forma de viver, preparamo-nos melhor para o inesperado que pode ocorrer no nosso caminho.

MJS – Será que os fundamentalismos religiosos, com que o mundo actual se defronta de um modo violento, decorrem também do facto de os seus arautos e seguidores não conseguirem aceitar nem conviver com as suas próprias limitações?
LF – Qualquer fundamentalismo religioso – islâmico, cristão, judaico, outros, é sempre uma traição à essência de uma religião. Não acho que seja possível viver sem uma qualquer espécie de disciplina. Sem ela não há moderação, e a falta de moderação acaba por nos arrastar para a crise, seja religiosa, económica, psicológica, ecológica… Se não aprendermos o significado da disciplina, depressa teremos o nosso planeta destruído. Falo em disciplina porque é um conceito que me interessa muito. A palavra “disciplina” está relacionada com “discípulo”. O discípulo é alguém que, livremente, sublinho que tem de ser livremente, pratica uma disciplina. Se a religião, ou o Estado, ou uma instituição, forçar alguém a seguir uma determinada disciplina, então ela acaba por destruir a humanidade desse alguém. Uma disciplina tem de ser libertadora e só o é quando livremente escolhida e aceite. Pode ser necessário alguma ajuda para a sabermos praticar, ou ensinamentos de um mestre para conhecermos o seu verdadeiro significado, mas isso não é o mesmo que sermos forçados a segui-la. Quando uma religião força alguém a qualquer coisa que a pessoa não escolheu em liberdade, essa religião deixa de ser espiritual e torna-se uma força opressora. E isso tem um nome - fundamentalismo. O trágico é que há alguma coisa na mente humana que faz com que, sempre que em situação de crise, se fique logo pronto a sacrificar a liberdade, a nossa e a dos outros. Vemos isto acontecer em muitas partes do mundo hoje em dia - sob a égide do medo do terrorismo, da guerra do terror, muitos são levados a aceitar a redução das suas liberdades civis, por razões de segurança. Insisto nas palavras “disciplina” e “discípulo” e na importância da sua aprendizagem para contrariar o actual estado das coisas. A raiz etimológia de ambas vem do latim “discere”, que quer dizer - aprender. O que é que um discípulo deve fazer? O verdadeiro discípulo deve, em plena liberdade e de acordo com uma disciplina que adoptou, mas que não lhe impõe regras rígidas, aprender a ser humano, aprender a ser ele próprio. Essa é a sua escolha, e deve praticá-la todos os dias, nas mais diferentes circunstâncias da sua vida, com cada pessoa com quem se relacionar. Falemos agora no relacionamento entre religiões. Há dois pensamentos, opostos, que atravessam no momento as diferentes religiões no mundo. Um, que é o que promove e estabelece o diálogo, reconhece que, quer sejamos budistas, muçulmanos, judeus, cristãos, hindus, sikhs, baha’is, temos todos uma base comum, a que chamamos Deus (com excepção dos budistas) e que é, como na caverna de Platão, a via que nos ajuda a sair das sombras para o reino da luz, onde podemos conhecer a verdadeira realidade. O outro pensamento, dominante em determinados sectores religiosos, recusa admitir que a base em que todos assentamos seja a mesma, afirmando que o “seu” Deus é o único Deus, que a “sua” definição de Deus é a única verdadeira, que todas as outras estão erradas e são mesmo “suas” inimigas. Esse é o que alimenta o fundamentalismo.

MJS – Tem esperança numa evolução das consciências, de forma a ser possível contrariar e banir esse tipo de radicalismo hostil e a aproximar os que acreditam no diálogo harmonioso e pacificador?
LF – Pense no que em nome do Cristianismo já se fez em séculos anteriores, em como até há menos de cinquenta anos, e em nome da fé cristã, se mantiveram impérios coloniais. O nome de Deus (católico, protestante, judaico, islâmico…) foi muito usado e abusado ao longo dos tempos, mas creio sinceramente que há, cada vez mais, uma nova consciência a emergir (pese embora a explosão de bolsas fundamentalistas), uma consciência que exige de todos que assumam a sua verdadeira e universal humanidade, que vivam de acordo com ela. É uma profunda evolução, um movimento que vem caminhando de longe, devagarinho, mas que começa a ter alguma visibilidade no nosso tempo. A escritora francesa Simone Weil, uma das minhas figuras de referência, ajudou à compreensão da necessidade desta consciência, quando definiu o conceito de “nova santidade” como sendo o mais apropriado para os tempos modernos, porque é aquele que vê e reconhece a “consciência universal da humanidade”, onde ninguém pode ser excluído. E há sinais, embora ténues, do despontar dessa consciência em vários domínios, como a política, a religião, a ecologia, a economia…

MJS – A meditação, que tanto louva e ensina a praticar, será talvez uma via para prestarmos mais atenção a esses sinais. Como é que aprendeu a meditar?
LF – O meu mestre espiritual foi o padre John Main. Não me tivesse eu encontrado com este extraordinário homem e talvez não fosse hoje um monge beniditino, nem tivesse descoberto o valor espiritual da meditação. Teria catorze anos quando o conheci. Era professor na escola, dirigida por beniditinos, que eu frequentava em Londres. Acompanhou a minha formação desde essa altura e foi ele quem, no meu segundo ano na Universidade de Oxford, onde estudei Literatura Inglesa, me introduziu nos caminhos da meditação. Não pensava vir a ser monge, mas comecei a aprender, ao princípio não muito bem, a meditar. A nossa relação aprofundou-se e John Main tornou-se o meu mestre espiritual. Acabado o curso, ainda pensei em doutorar-me e seguir a via académica, mas fui trabalhar para a Banca (mundo que me fascinava, embora não fosse bom a matemática) e depois fiz jornalismo. A um dado momento o padre John Main decidiu criar uma comunidade laica no mosteiro onde ensinava, o mesmo que eu tinha frequentado em rapaz. A ideia de viver com os monges no mosteiro, durante seis meses, e de aprender a meditar sob a sua orientação, intrigou-me. Era uma experiência bastante intensa, mas quis fazê-la, precisava da disciplina que aquela aprendizagem exigia. Pedi-lhe para ser aceite. A experiência foi fortíssima, dolorosa mas excitante, e mudou o rumo da minha vida. No fim dos seis meses, era suposto regressar ao mundo do trabalho, mas percebi que já não tinha o mesmo entusiasmo pelo jornalismo ou por aquilo que até aí fizera. Também não queria entrar para o mosteiro. Senti-me “apanhado” num dilema de escolha. Estes são os momentos em que geralmente se cresce, em que ficamos mais próximos do nosso verdadeiro “eu”. Tinha uma ideia, vaga, de que talvez mais tarde me fizesse monge, quando tivesse concretizado as minhas ambições, quando o meu ego estivesse satisfeito. Mas faltava-me a energia e o gosto para voltar ao mundo da “carreira”, a tal que me tornaria um dia “rico e famoso”. Depois de uma grande luta comigo mesmo, percebi que não tinha alternativa e decidi entrar na Ordem, tornar-me monge. O padre John Main, com quem fui ter, não me encorajou, mas ajudou-me muito a perceber o sentido daquela decisão, decisão que devia ser exclusivamente minha.

MJS – Peço-lhe que fale agora de um outro sentido, o da meditação, do seu significado e contributo para a descoberta do verdadeiro “eu” de cada pessoa, da nossa humanidade.
LF - Meditação é o que os monges e mestres mais antigos diziam ser a “ oração pura” (oratio pura). Foi com os ensinamentos desses primeiros monges, os padres do deserto, que John Main recuperou o sentido da meditação e a sua importância para a vida dos cristãos. As pessoas que querem aprender a meditar, fazem-no porque precisam de uma experiência mais profunda da vida. A maioria anda à procura de Deus. Há várias maneiras de rezar e de se chegar à meditação. Quando em criança aprendi a rezar, fazia-o de acordo com alguns preceitos que me ensinavam a dar graças a Deus, a imaginar Deus, a pedir-Lhe ajuda, a conversar com Ele. Quando ia à igreja, rezava em adoração a Deus, prestava-lhe culto. Soube mais tarde que era possível uma outra forma de comunicação com Deus, que se chamava “concentração”, mas a essa experiência só alguns, os místicos, conseguiam aceder. Rezar, nos termos que acabei de referir, era uma coisa “mental”. Ora a meditação é a oração que se faz com o coração, não com a cabeça. Quando se começa meditar, passa-se a compreender a oração de uma maneira diferente. Costumo dar um exemplo – rezar é a nossa viagem até Deus e a oração pode ser vista como uma grande roda. Os primitivos cristãos diziam “O modo como rezas, é o modo como vives”. Esta definição é aquilo a que nos tempos modernos se chama “espiritualidade”. A espiritualidade não é um extra que se aplica à nossa vida, tem de ser o modo como se vive a nossa vida, em todos os aspectos, do económico, ao afectivo, ao mental, ao religioso... Sendo a oração a tal grande roda que faz girar a nossa vida até Deus, há nela vários raios – são as diferentes formas de rezar, que podem ser ir à igreja, ler as Escrituras, conversar em silêncio com Deus, cozinhar, olhar para o mar, pintar, acariciar um ser amado… Desde que se esteja completamente envolvido no que se faz, de uma forma inclusiva e generosa, religiosamente ou não, fazemos parte dos raios da roda. Onde é que todos os raios se encontram? No ponto central da roda, no eixo. O que é que vemos acontecer no eixo? Vemos que a diversidade das múltiplas formas de “oração” se encontra e funde na unidade daquele único espaço aberto para onde todos os raios convergem. Essa é a essência da oração, o seu coração. Para mim, como cristão, o eixo da roda é o espírito de Cristo e é lá que a minha oração se transforma na Sua oração. São Paulo disse – “Não vivo mais tempo do que o tempo que Cristo vive em mim.” Podemos, se preferirmos, dizer que o que encontramos no eixo da roda é a quietude. Não havendo quietude a roda não consegue girar. Essa quietude é a meditação. A prática da meditação leva-nos até à quietude e é através da “atenção” que a atingimos. Sobre este ponto, Simone Weil, mais uma vez ela, escreveu – “ A atenção purifica, purifica o nosso egotismo”. Ora, quando em criança nos ensinaram a rezar, provavelmente disseram-nos que a natureza profunda da oração era a “intenção” – o que queremos dizer a Deus, o que desejamos que Ele nos conceda, etc. Essa não é a maneira mais profunda de rezar. Se percebermos que é pela “atenção” que chegamos a Deus, ou a um outro, conseguiremos então atingir a unidade e estaremos verdadeiramente juntos. Meditar convoca-nos para a “atenção”, não está em oposição ao que fazemos quando rezamos, mas é distinto.

MJS – Veio a Portugal também para participar no painel “Em Louvor da Beleza – um Caminho para a Paz”. Regressando aos três pilares do legado platónico, porquê a Beleza, e não o Bem ou a Verdade?
LF - A trindade (conceito de grande importância em todas as religiões) do Bem, do Belo e da Verdade, é a que melhor revela, para a nossa compreensão, a essência de Deus. Para o pensamento cristão, digamos que essa é uma antiquíssima antecipação, ou intuição, da Divina Trindade. Na história do Cristianismo o ênfase foi sempre posto no Bem e na Verdade. O Judaísmo e o Islão, por exemplo, não tiveram a obsessão com as definições da Verdade (a Verdade dos dogmas, a Verdade do Verbo…), como o Cristianismo que, durante séculos e séculos, baseou a sua vida em torno dessa questão. Focámo-nos continuamente na Verdade e também, como base da moral, no Bem. Debates controversos e intermináveis sobre estes dois conceitos atravessaram a vida dos cristãos. Foi excessiva e errada a focagem quase exclusiva no Bem e na Verdade, neglicenciando o polo da Beleza. Filosófica e teologicamente esquecemos um aspecto essencial de Deus, o Belo. De um ponto de vista humano, podemos viver a experiência do Belo de várias maneiras. A beleza física do corpo, no apogeu da vida ou no momento da morte, a beleza de uma obra de arte, a beleza da Natureza, de uma descoberta científica, etc… Sempre que dizemos que alguma coisa é bela, estamos a dizer que descobrimos nela um dom, uma dádiva, algo que não podemos controlar ou medir com exactidão, que não está nas nossas mãos fixar e que, de algum modo, contém em si uma espécie de segredo, uma verdade que escapa a uma definição comum. Por tudo isso, a beleza tem uma grande capacidade para nos “curar”, para nos refrescar e regenerar. Se nos sentimos presos a um dogma, ou a uma moral, ou a uma ideologia, a percepção do Belo tem o condão de nos libertar, de nos aproximar da verdadeira essência da realidade com que nos defrontamos, de nos reconduzir a uma espécie de inocência perdida. A experiência da beleza, na sua totalidade - física, mental e espiritual, está para além da dualidade da compreensão que, normalmente, preside às outras experiências que vivemos. A mente funciona dualisticamente: mal e bem, feminino e masculino, certo e errado, claro e escuro… Se vivermos exclusivamente ao nível da dualidade, vivemos em conflito e o conflito conduz à violência. Quando se faz, profundamente, a experiência do Belo, não se pode sentir rancor, não se pode estar zangado. A energia da raiva dissolve-se nesse momento. Não há padrões universais de Beleza, mas não é difícil imaginar que em qualquer parte do mundo se reconhece a beleza de uma criança. O terrível é depois vermos como, em situações de guerra e conflito (lembremo-nos do Holocausto), até as crianças são sacrificadas. Não podemos, portanto, ser sentimentais nestas reflexões sobre o Belo, porque sabemos como a civilização tem tido momentos de colapso, matando em si a capacidade de percepcionar a beleza. A nova consciência universal, de que já falámos, deverá prestar uma crescente “atenção” ao contributo do Belo para a paz no mundo. Também desse modo a “nova santidade” ganhará maior expressão.

MJS – Padre Laurence, dê-me uma palavra de eleição.
LF - Um e outro.

(Entrevista conduzida em Cascais, 17 de Marçe de 2006)