A BELEZA DA ORAÇÃO CONSISTE NO FACTO DE QUE O ABRIR DO NOSSO CORAÇÃO É TÃO NATURAL COMO O DESABROCHAR DE UMA FLOR. PARA QUE UMA FLOR ABRA E FLORESÇA BASTA ESPERAR; PORTANTO, SE ESPERARMOS, SE NOS AQUIETARMOS E ASSIM PERMANECERMOS QUIETOS E SILENCIOSOS, O NOSSO CORAÇÃO ESTARÁ INEVITAVELMENTE ABERTO E O ESPÍRITO BROTARÁ DENTRO DO NOSSO SER. FOI PARA ESTE FIM QUE FOMOS CRIADOS. JONH MAIN, OSB (1926-1982)

terça-feira, fevereiro 06, 2007

" AS RAÍZES DA NOSSA TRADIÇÃO"

Texto da comunicação do 3º encontro do Curso de Iniciação à Meditação Cristã


A prática da oração contemplativa remonta às comunidades primitivas nos desertos da África e no Médio Oriente nos princípios do terceiro século. Os primeiros autores que escreveram sobre esse tema foram os padres gregos de Alexandria. Influenciados pelo cruzamento entre o cristianismo e a filosofia platónica, Clemente e Orígenes viam a alma como a imagem de Deus dentro de nós. Esta perspectiva de interioridade foi retomada pelos Padres e Madres do Deserto durante o século IV e com eles surgiu a tradição monástica, a qual tem sido, através da história, a guardiã do misticismo cristão.
Três modelos iniciais de monaquismo floresceram a partir do III ao VI séculos no alto e no baixo Egipto. O modelo eremítico, é melhor representado por Antão , o Grande, um copta, célebre pelas tentações e lutas contra o diabo, que deixou uma vida de riquezas para estar só, no deserto. Esta abordagem eremítica enfatiza o individualismo e a solidão.
No segundo modelo, a oeste do delta do Nilo, surgem pequenos ajuntamentos livres de monges vivendo sob a direcção de um pai espiritual o “abba”. É desta zona que provem João Cassiano e os seus relatos sobre a prática do deserto. Estes eram monges mais letrados, já que havia centros académicos nas vizinhanças. Foi aqui que Evagrius escreveu os seus trabalhos, o “Praktikos” e os “Capítulos sobre a Oração”. É também dessas regiões que provêm os “Os Ditos dos Padres do Deserto – os Apotegmas”. Os monges dessa área viviam em extrema pobreza e simplicidade, devotando-se a vida de oração e trabalho manual, tal como tecer cestos.
A terceira forma de monaquismo desenvolveu-se no Alto Egipto. E caracteriza-se pelo cenobitismo, ou a vida em comum, de oração e trabalho, mais comum no Ocidente. Outras formas surgiram na Síria, Ásia Menor e Gaza, na Palestina. O objectivo de todos estes modos de vida era proporcionar as melhores condições para se viver radicalmente o Evangelho de Cristo e tornar possível o tipo de mudança proposto por Jesus. Os monges de então pensavam que havia algo na nossa condição humana que necessitava de cura, como se evidenciava na sociedade e cultura em que viviam e que produzia uma grande carga de sofrimento. Desse modo, para que alguém se tornasse mais completamente receptivo a Deus e à transformação pelo Espírito Santo, era necessária alguma forma de solidão e separação física da sociedade humana. Os monges também achavam que havia algo na natureza dos nossos pensamentos e dos nossos apegos a eles que nos tornam susceptíveis ao pecado. Daí eles concluírem, que é no silêncio interior que devemos buscar uma maior liberdade em relação aos nossos pensamentos, de modo a encontrarmos Deus mais totalmente.
Então o controle dos pensamentos começa a ser relacionado com a oração contínua. João Cassiano descreve o uso de uma fórmula de oração como um artifício para focalizar a concentração na oração. Ele recomendava uma frase do salmo 69,2: “Vinde, ó Deus em meu auxílio, Senhor, apressai-vos em socorrer-me”.
(A prática de rezar com uma palavra ou frase da Escritura foi trazida para o monaquismo ocidental através da prática da Lectio Divina.)
Acompanhando Cassiano, ocorreram outros desenvolvimentos na oração, na tradição do deserto. Talvez o mais importante desse período, que aliás tem continuado na tradição Ortodoxa Oriental até hoje, foi o desenvolvimento da Oração de Jesus. Acredita-se no poder do santo nome de Jesus, acredita-se que por si só ele contenha um poder purificador e um efeito salvífico. A oração de Jesus divulgou-se no Ocidente a partir da obra russa do séc. XIX, “O caminho de um Peregrino”.
A tradição oriental da oração do deserto é talvez melhor expressa por João Clímaco, um monge que viveu por volta do ano 600. Ele advogava a oração de uma frase e acrescentou a dimensão de se harmonizar a oração com a respiração
O resultado desta prática é a conversão de todo desejo, num único, Deus.

Os Padres do deserto foram, antes de mais, cristãos verdadeiramente incarnados, tentando viver o mais fielmente possível as lições do evangelho. A origem do movimento é deveras complexa. Sabe-se que as perseguições levaram cristãos para o deserto. Mas, paradoxalmente, a paz religiosa que se seguiu levou outros a procurar na solidão, na renúncia e na penitência, uma espécie de martírio de substituição (o martírio branco, do deserto, por oposição ao martírio vermelho, pelo sangue), sendo essa penitência a passagem obrigatória para a santidade. (Nos primórdios da Igreja, só reconheciam como santo aquele que tinha literalmente derramado o seu sangue pela fé. S.Martinho seria o primeiro canonizado de entre os não-mártires).
Num texto da época podemos ler o seguinte: “Ao homem que voluntariamente se auto-imola, Deus coloca-o ao nível dos mártires uma vez que as lágrimas são consideradas como gotas de sangue”.
A estas descrições podem acrescentar-se outras, talvez menos nobres, como os casos em que as pessoas abandonavam as povoações para fugir aos impostos, à polícia, etc. Mas devia ser uma ínfima minoria.
Essencialmente, o monge procura unificar-se, vivendo apenas para Deus. Contudo, este amor não exclui o amor pelo próximo, antes intensifica-o, contribuindo para a purificação do coração. Para o monge, assim como para qualquer cristão, os dois mandamentos do amor são inseparáveis, ainda que o seu retiro do mundo o leve a amar de forma diferente. Segundo um texto famoso do monaquismo antigo, “o monge é aquele que se separa de todos para estar unido a todos”.
O monge retira-se para o deserto. O deserto representa a sua vocação, pois é um tema bíblico, com um duplo significado. O deserto é o local onde habitam os demónios. Isso é dito no Evangelho: “Jesus é conduzido a esse local árido e nada hospitaleiro para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1). “Vai-te daqui! O que vens aqui fazer?” – gritam os demónios a Antão. Como Jesus, o Ancião do deserto vai combater este inimigo do género humano.
Mas, segundo a Escritura, o deserto também é o local de um encontro privilegiado com Deus.
Na literatura monástica antiga encontramos uma quantidade de acontecimentos fantasiosos: milagres, visões, revelações, que não devem ser interpretados à letra. Em relação a esses acontecimentos não devemos ser nem demasiado crédulos, nem demasiado racionalistas. Pouco importa se os factos foram ou não reais. O importante é olhar a vida que levavam esses homens e mulheres do deserto. Eles sabiam perfeitamente que a salvação não dependia de acções excepcionais ou espectaculares que um ou outro dom permitiam realizar. Quando se perguntou a um abba: “O que é preciso fazer para se ser salvo?” Ele estava ocupado com o seu humilde ofício de cesteiro e respondeu: “Aquilo que estás a ver”.
Estes primeiros monges vinham de todo o lado e de todos os tipos de meios. Para ilustrar esse aspecto vou-vos ler uma história que ajuda a melhor compreender o lado pitoresco das suas vidas (ler “Padres do Deserto” pág. 18)
Para além da oração, as vidas dos Padres do Deserto assentavam sobre outros dois pilares: uma ascese libertadora, e uma caridade efectiva.
A ascese, entendida como uma renúncia voluntária às coisas que nos sabem bem, com vista a uma maior união com Deus é, de facto, um aspecto essencial (que nós, hoje, não valorizamos…). A ascese cola-se à vida deles, de forma tão profunda que os qualifica: chamavam-lhes ascetas. Mas haverá cristianismo autêntico sem renúncia?
O objectivo da ascese consiste em favorecer o desabrochar da vida nova que recebemos no baptismo. Ela contribui para a purificação da nossa alma. Por isso ela é libertadora. A essencialidade da ascese traduz-se neste dito de um abba: “Que ninguém se engane; da mesma forma que a terra não pode dar fruto sem semente nem água, também é impossível para o homem colher frutos sem um trabalho ascético.”
Os Padres do Deserto dedicaram-se corajosamente à ascese do corpo e do espírito. Mas, se ficássemos por aqui, a sua mensagem ficaria perigosamente mutilada. Eles ensinam-nos que a ascese deve ser praticada com humildade, moderação e que não se deve perder de vista a sua razão de ser, que é a caridade. A ascese só é verdadeiramente cristã se deixar transparecer os dons do Espírito Santo, em particular aqueles que estão ligados às relações com os outros, como a amabilidade, a prestabilidade. Um ancião disse: “ O jejum não é nada, a vigília não é nada, todo e qualquer sofrimento não são nada, se a caridade não estiver presente.”
Na verdade, esses homens e mulheres podiam atingir graus de delicadeza extrema uns para com os outros… Cassiano escreve como havia irmãos que se levantavam de noite para executarem às escondidas as tarefas dos outros e aliviá-los, assim, um pouco. Eis outros exemplos de delicadeza na caridade: Dois irmãos faziam o mesmo trabalho; um era muito habilidoso de mãos e o outro nem tanto e acontecia, frequentemente, que não conseguia acabar o objecto que estava a fabricar. Então o primeiro, para que o colega não se sentisse humilhado, também fazia por falhar, de tempos a tempos.
Alguns anciãos foram ao encontro de um abba e disseram-lhe: “Se virmos algum irmão a adormecer durante a, oração, devemos repreendê-lo?” Ele respondeu: “No meu caso, quando vejo um irmão adormecer, coloco a cabeça dele nos meus joelhos e deixo-o descansar”
Um irmão foi visitar o célebre abba Macário. Depois das orações, disse ao ancião: “Pai, há trinta anos que não como carne e continuo a ser tentado a esse respeito”. O ancião respondeu-lhe: “Em vez de me dizeres isso, diz-me: quantos dias passaste sem maldizer o teu irmão, sem julgar o teu próximo?” O irmão prostrou-se e disse: Reza por mim, meu Pai, para que comece hoje”.
Um ancião lembra-nos que a ascese mais difícil é a da língua; aquele que for capaz de dominar esse minúsculo instrumento é um homem perfeito. Os Padres do deserto teriam podido deixar-nos um apotegma do género: Se o corpo está destinado a ser inteiramente transfigurado, a língua será transfigurada em último lugar e não sem pena nossa!
Ainda a propósito da caridade, Cassiano disse dos padres do Egipto que, graças ao trabalho, reuniram grandes quantidades de viveres e dirigiram-nas, seja para regiões onde reinava a fome, seja para as cidades, para aqueles que desfaleciam nos calabouços.
A caridade não consiste somente em dar, mas também na maneira como se dá. Um ancião disse: ”Tudo o que distribuis como esmola, não o dês com dureza e frieza, mas olha o pobre com alegria na alma e com um rosto doce e eleva-o, assim, acima de ti com honra, sabendo que a oferenda ao pobre é do agrado de Cristo e que o Senhor ama aquele que dá com alegria”.
Um apotegma revela, melhor do que grandes teorias, o segredo desta caridade verdadeira. Um irmão tinha duas túnicas, uma boa e uma má. Um estrangeiro foi mendigar para junto dele. Ele deu-lhe a boa e guardou para si a má. Alguém lhe perguntou: “Porque é que não lhe deste a má e ficaste com a boa para ti? Ele respondeu: “Darias a pior a Deus?” Isto significa ver Cristo no irmão.

Foi João Cassiano, que viveu anos com os monges do deserto, nomeadamente o venerado Abade Isaac, que trouxe a tradição monástica para o Ocidente, fundando duas comunidades em Marselha, uma para homens e outra para mulheres. Começou então a anotar tudo aquilo que tinha aprendido com os padres do deserto. Esses escritos e ensinamentos influenciaram muitíssimo o monaquismo, tanto o céltico como o benedictino, divulgando essa forma simples de oração por toda a Europa, até ao tempo da Reforma protestante e da Revolução Francesa, altura em que muitos mosteiros caíram e muitos dos ensinamentos se perderam.
Foi Paulo VI que valorizou de novo a dimensão contemplativa dentro da Igreja. Chamou alguns monges ao Vaticano e pediu-lhes que fossem para fora dos mosteiros e partilhassem esse tipo de prece com as pessoas.

Para os antigos padres da Igreja o objectivo da oração era claramente a divinização. Como dizia S. Basílio “O ser humano é uma criatura que recebeu a vocação de se tornar Deus”. Gregório de Nyssa dizia no séc. IV “A nossa dimensão espiritual está para além da nossa compreensão… por este mistério que nos habita trazemos a marca da divindade invisível”. A Ocidente St. Ireneu afirmava que “A glória de Deus é o ser humano plenamente vivo e a plenitude da vida vem da visão de Deus”

E quase a terminar, gostava de citar alguns textos do livro “Da Oração” de João Cassiano, sobre a oração contínua: págs. 54,80,85,89,100

Diz-se dos Padres do Deserto, que eles foram uns seres tão excepcionais que alcançaram um ponto em que o eu simplesmente havia desaparecido. Por isso, gostava de vos ler uma história bem ilustrativa disso mesmo, e com ela termino (“Ditos e feitos dos Padres do Deserto” pág.235).

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Bibliografia:“Os Padres do Deserto” – Marcel Driot –Ed. Paulus
“Ditos e Feitos dos Padres do Deserto”– Assírio e Alvim
“ Da Oração”- João Cassiano – Ed. Ora e Labora