A BELEZA DA ORAÇÃO CONSISTE NO FACTO DE QUE O ABRIR DO NOSSO CORAÇÃO É TÃO NATURAL COMO O DESABROCHAR DE UMA FLOR. PARA QUE UMA FLOR ABRA E FLORESÇA BASTA ESPERAR; PORTANTO, SE ESPERARMOS, SE NOS AQUIETARMOS E ASSIM PERMANECERMOS QUIETOS E SILENCIOSOS, O NOSSO CORAÇÃO ESTARÁ INEVITAVELMENTE ABERTO E O ESPÍRITO BROTARÁ DENTRO DO NOSSO SER. FOI PARA ESTE FIM QUE FOMOS CRIADOS. JONH MAIN, OSB (1926-1982)

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

25 anos mais tarde
Celebrando Cantley, Janeiro de 2007

a vida e o legado de John Main

Caros Group Leaders,

Em 1982 John Main morreu em Montreal com 56 anos de idade, deixando um mosteiro que fundara apenas cinco anos antes para ensinar oração contemplativa a religiosos e a leigos. A comunidade crescente de monges e meditantes ficou profundamente enlutada com a partida tão precoce de um tal guia, professor e amigo. Um sentimento profundo de mistério e esperança no futuro misturava-se com a tristeza no coração de todos: o que é que iria acontecer ao jovem mosteiro, e à comunidade de meditação associada a ele? O convento teve que fechar nove anos mais tarde não aguentando a tensão entre o seu papel como casa monástica de formação e um centro de uma família espiritual em crescimento rápido e global. Laurence Freeman OSB foi escolhido para director da comunidade mundial de meditação cristã com um conselho de orientação internacional de 18 pessoas e um grupo de coordenadores nacionais bastante dedicado. Hoje, 25 anos depois da morte de John Main a CMMC está presente em mais de cem países. Os cristãos pelo mundo fora descobriram nos seus ensinamentos de meditação um caminho simples e profundo para o mistério de Deus.

Em Outubro deste ano o seminário de John Main vai celebrar a sua vida e o seu legado. Terá lugar em Orford, não longe de Montreal. Você está afectuosamente convidado a tomar parte neste acontecimento e a conhecer outros meditantes do Canadá e de outros países. Para completar esta reunião internacional, sugerimos que marque este ano de um modo especial a nível local. O conselho nacional preparou para esse efeito algum material e convidamos todos os grupos de meditação no Canadá para lançar uma ou mais iniciativas durante o ano de 2007.

Há um leque variado de actividades que o seu grupo pode organizar durante o ano. A lista de ideias em anexo foi elaborada por meditantes de Halifax, Ottawa e Winnipeg. Você poderá provavelmente pensar noutras. Leia estas sugestões em conjunto com o seu grupo de meditação e escolha algumas que possam ser dinamizadoras e significativas para vós ou crie outras que tenham mais sentido para si.


Explore, seja criativo e… actue!

Michel Legault
Lista de actividades para marcar o 25º aniversário

Esta lista foi sugerida por um grupo de meditantes de Halifax\Dartmouth, Ottawa e Winnipeg. Havia um alto nível de energia em todos os grupos ao seguirem a sua criatividade. Ao ler esta lista com o seu grupo, os exemplos como um ponto de partida, permitindo-se modifica-los ou criar outros.

Prepare e dê uma conferência sobre a vida e os ensinamentos de John Main. (veja as notas incluídas).
Ofereça-se para dar a homilia na sua paróquia focando a meditação cristã.
Organize um retiro de fim-de-semana para o seu grupo de meditação ou outro tipo de retiro ou um dia especial.
Contacte o centro de retiros mais próximo de si e dê-lhe um livro ou cd de John Main ou Laurence Freeman.
Convide um padre ou pastor para o seu grupo de meditação.
Convide um sacerdote a dar o livro The prayer of the Priest ao seu bispo.
Como grupo apoie a CMMC tornando-se um Amigo (brochura incluída).
Apoie economicamente um dos membros do seu grupo a assistir à Conferência Nacional no Canadá ou ao Seminário John Main 2007.
Obtenha um dos vídeos sobre meditação cristã e veja-o com o seu grupo. (a lista está incluída)
Apresente a meditação cristã a um grupo de professores.
Ofereça um artigo sobre John Main ao seu jornal local. (amostra do artigo incluída)
Participe num acontecimento inter-religioso ou organize um.
Sugira à biblioteca local os livros chave de John Main e Laurence Freeman.
Plante uma árvore num sítio especial em honra à memória de John Main.
Crie um espaço calmo e sagrado no seu jardim.
Prepare uma exposição sobre John Main e a meditação cristã para acontecimentos diocesanos.
Marque uma semana especial organizando uma série de conferências durante as noites de uma semana onde houver vários grupos de meditação na mesma área.
Visite outro grupo de meditação ou convide-os para visitar o seu.
Organize um serão para o público em geral e convide um orador fora da sua área de residência.
Aproxime-se de grupos especiais como doentes com SIDA, serviços prisionais, etc.
Inclua um artigo sobre John Main e o seu legado de meditação cristã no boletim da sua igreja.

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Arunachala





29 de Janeiro de 2007



A noite da lua cheia é um tempo auspicioso para fazer pradakshina, o andar à volta da montanha sagrada de Arunachala, no sul da Índia. É suposto primeiro banharmo-nos, depois andar descalço e com a mente pura os treze quilómetros à volta do cone de 800m que personifica a divindade Siva.Eu não me tinha banhado, não caminhei descalço e a minha mente não estava pura.Mas a caminhada com milhares de peregrinos reais, à volta deste, para mim, símbolo Trinitário, conferia não obstante verdadeira graça. A palavra pradakshina reúne muitos significados que explicam a razão universal das caminhadas sagradas aqui na Índia, o caminho para Compostela ou os labirintos das catedrais medievais: ela expulsa o pecado, satisfaz os desejos verdadeiros, destrói o karma e favorece o trabalho de libertação.


Os meus companheiros de caminho pareciam ter a sola dos pés de ferro ou talvez caminhar numa almofada de ar. Rodeava-os uma intensidade de propósito assustadora, um sentido que estavam certos do que faziam, quer andassem depressa ou devagar, falando ou em silêncio. A lua cheia brilhava. Ao caminhar-mos à volta do seu silêncio imutável, a montanha, como Deus, revelava de um modo intrigante e sedutor perspectivas sempre diferentes.


A luz “claro-escuro” e os efeitos do som ao longo do caminho dramatizam o sagrado sem chocar com o profano. Esta feira da vida completa representa a força admirável da experiência religiosa indiana na qual o místico e o sexual – como os símbolos genitais “linga e yoni” nos templos indianos – coexistem em modos que os missionários cristãos no passado, acharam desconcertantes ou mesmo pornográficos. A confusão e a variedade humanas da caminhada sagrada à volta da Arunachala juntam comércio e prece, divertimento e veneração com um desembaraço católico. Digam-me porque é que eu não devia estar aqui? Parece dizer se pensarmos que não devia. Nestes momentos eu pensei em Clemente de Alexandria dizendo que nada que não seja contra a natureza é contra Cristo. Barracas a vender comidas e bebidas, tendas bem iluminadas a vender cassetes religiosas e fotografias sagradas, santuários menores para o ritual momentâneo, cheiros de incenso e arroz delicioso embrulhados em folha de banana, muitos cheiros menos agradáveis, devotos de alguns gurus oferecendo os seus ensinamentos, motorizadas furando humildemente por esta multidão avassaladora. Não há um ponto definido de partida ou de chegada e nada parece interdito. O que é que se conseguiu quando se fez a caminhada? Andou-se à volta duma montanha na lua cheia com milhares de Hindus em fervor religioso e uma mão cheia de ocidentais cépticos tentando parecer naturais. Esteve-se na presença de Arunachala e fez-se uma visita a casa.

Esta presença atraiu peregrinos e devotos durante séculos, O mais conhecido dos tempos modernos foi um jovem indiano de 17 anos, classe média, de Madurai chamado Venkataraman e que ficou conhecido mundialmente como Ramana Maharshi. Em 1896 quando ouviu falar de Arunachala pela primeira vez, era um estudante médio de uma escola cristã interessado em futebol. O próprio som da palavra começou a mudá-lo. Um dia, alguns meses mais tarde e sem razão aparente começou a ficar aterrado com a ideia da morte.Decidiu explorar esse medo e deitou-se no chão como morto e aí, num flash, soube que o Eu é imortal. Compreendeu o Self e permaneceu nesse estado de Iluminação até à sua morte em 1950. Pouco depois desta experiência foi de comboio ao templo das mil colunas de Arunachaleswara no sopé de Arunachala. Sentou-se em estado de graça pela sua iluminação sem se preocupar com as necessidades materiais. Num outro mundo ele seria levado por homens de bata branca e medicado numa enfermaria fechada. Aqui ele foi cuidado e visitado por aqueles que viam a presença que ele irradiava. A história é como a de S. Bento que, em Sacro Speco, passou como ele anos de silêncio numa gruta antes de se tornar o centro de um ashram. Ao contrário de Bento, Ramana não deixou uma Regra- apenas o simples ensinamento de auto-análise, perguntar-se continuamente “quem sou eu?”. Mas como Bento o seu legado é muitas vezes dispersado pelo que tenta preservá-lo.


No dia seguinte era o aniversário de Ramana- visitantes e acontecimentos especiais, todos barulhentos e alegres, A gruta que, como a de S. Bento preserva a atmosfera da experiência original, estava inexplicavelmente, fechada. A escola bramânica no ashram estava de férias e os jovens estudantes jogavam voleibol brilhantemente. (Ramana tinha cortado o cordão Brahmin assim que regressou a Arunachala). A loja do ashram fazia bom negócio.


Como é que se pode institucionalizar a experiência de Deus? Todavia e apesar das falhas das instituições que ela produz, alguma coisa selvagem e livre como a pradakishna, sobrevive para testemunhar o que foi uma vez manifestado. E como Rumi uma vez declarou: tudo gira à volta do que ama.


Muito amor
Laurence Freeman OSB

terça-feira, fevereiro 06, 2007

" AS RAÍZES DA NOSSA TRADIÇÃO"

Texto da comunicação do 3º encontro do Curso de Iniciação à Meditação Cristã


A prática da oração contemplativa remonta às comunidades primitivas nos desertos da África e no Médio Oriente nos princípios do terceiro século. Os primeiros autores que escreveram sobre esse tema foram os padres gregos de Alexandria. Influenciados pelo cruzamento entre o cristianismo e a filosofia platónica, Clemente e Orígenes viam a alma como a imagem de Deus dentro de nós. Esta perspectiva de interioridade foi retomada pelos Padres e Madres do Deserto durante o século IV e com eles surgiu a tradição monástica, a qual tem sido, através da história, a guardiã do misticismo cristão.
Três modelos iniciais de monaquismo floresceram a partir do III ao VI séculos no alto e no baixo Egipto. O modelo eremítico, é melhor representado por Antão , o Grande, um copta, célebre pelas tentações e lutas contra o diabo, que deixou uma vida de riquezas para estar só, no deserto. Esta abordagem eremítica enfatiza o individualismo e a solidão.
No segundo modelo, a oeste do delta do Nilo, surgem pequenos ajuntamentos livres de monges vivendo sob a direcção de um pai espiritual o “abba”. É desta zona que provem João Cassiano e os seus relatos sobre a prática do deserto. Estes eram monges mais letrados, já que havia centros académicos nas vizinhanças. Foi aqui que Evagrius escreveu os seus trabalhos, o “Praktikos” e os “Capítulos sobre a Oração”. É também dessas regiões que provêm os “Os Ditos dos Padres do Deserto – os Apotegmas”. Os monges dessa área viviam em extrema pobreza e simplicidade, devotando-se a vida de oração e trabalho manual, tal como tecer cestos.
A terceira forma de monaquismo desenvolveu-se no Alto Egipto. E caracteriza-se pelo cenobitismo, ou a vida em comum, de oração e trabalho, mais comum no Ocidente. Outras formas surgiram na Síria, Ásia Menor e Gaza, na Palestina. O objectivo de todos estes modos de vida era proporcionar as melhores condições para se viver radicalmente o Evangelho de Cristo e tornar possível o tipo de mudança proposto por Jesus. Os monges de então pensavam que havia algo na nossa condição humana que necessitava de cura, como se evidenciava na sociedade e cultura em que viviam e que produzia uma grande carga de sofrimento. Desse modo, para que alguém se tornasse mais completamente receptivo a Deus e à transformação pelo Espírito Santo, era necessária alguma forma de solidão e separação física da sociedade humana. Os monges também achavam que havia algo na natureza dos nossos pensamentos e dos nossos apegos a eles que nos tornam susceptíveis ao pecado. Daí eles concluírem, que é no silêncio interior que devemos buscar uma maior liberdade em relação aos nossos pensamentos, de modo a encontrarmos Deus mais totalmente.
Então o controle dos pensamentos começa a ser relacionado com a oração contínua. João Cassiano descreve o uso de uma fórmula de oração como um artifício para focalizar a concentração na oração. Ele recomendava uma frase do salmo 69,2: “Vinde, ó Deus em meu auxílio, Senhor, apressai-vos em socorrer-me”.
(A prática de rezar com uma palavra ou frase da Escritura foi trazida para o monaquismo ocidental através da prática da Lectio Divina.)
Acompanhando Cassiano, ocorreram outros desenvolvimentos na oração, na tradição do deserto. Talvez o mais importante desse período, que aliás tem continuado na tradição Ortodoxa Oriental até hoje, foi o desenvolvimento da Oração de Jesus. Acredita-se no poder do santo nome de Jesus, acredita-se que por si só ele contenha um poder purificador e um efeito salvífico. A oração de Jesus divulgou-se no Ocidente a partir da obra russa do séc. XIX, “O caminho de um Peregrino”.
A tradição oriental da oração do deserto é talvez melhor expressa por João Clímaco, um monge que viveu por volta do ano 600. Ele advogava a oração de uma frase e acrescentou a dimensão de se harmonizar a oração com a respiração
O resultado desta prática é a conversão de todo desejo, num único, Deus.

Os Padres do deserto foram, antes de mais, cristãos verdadeiramente incarnados, tentando viver o mais fielmente possível as lições do evangelho. A origem do movimento é deveras complexa. Sabe-se que as perseguições levaram cristãos para o deserto. Mas, paradoxalmente, a paz religiosa que se seguiu levou outros a procurar na solidão, na renúncia e na penitência, uma espécie de martírio de substituição (o martírio branco, do deserto, por oposição ao martírio vermelho, pelo sangue), sendo essa penitência a passagem obrigatória para a santidade. (Nos primórdios da Igreja, só reconheciam como santo aquele que tinha literalmente derramado o seu sangue pela fé. S.Martinho seria o primeiro canonizado de entre os não-mártires).
Num texto da época podemos ler o seguinte: “Ao homem que voluntariamente se auto-imola, Deus coloca-o ao nível dos mártires uma vez que as lágrimas são consideradas como gotas de sangue”.
A estas descrições podem acrescentar-se outras, talvez menos nobres, como os casos em que as pessoas abandonavam as povoações para fugir aos impostos, à polícia, etc. Mas devia ser uma ínfima minoria.
Essencialmente, o monge procura unificar-se, vivendo apenas para Deus. Contudo, este amor não exclui o amor pelo próximo, antes intensifica-o, contribuindo para a purificação do coração. Para o monge, assim como para qualquer cristão, os dois mandamentos do amor são inseparáveis, ainda que o seu retiro do mundo o leve a amar de forma diferente. Segundo um texto famoso do monaquismo antigo, “o monge é aquele que se separa de todos para estar unido a todos”.
O monge retira-se para o deserto. O deserto representa a sua vocação, pois é um tema bíblico, com um duplo significado. O deserto é o local onde habitam os demónios. Isso é dito no Evangelho: “Jesus é conduzido a esse local árido e nada hospitaleiro para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1). “Vai-te daqui! O que vens aqui fazer?” – gritam os demónios a Antão. Como Jesus, o Ancião do deserto vai combater este inimigo do género humano.
Mas, segundo a Escritura, o deserto também é o local de um encontro privilegiado com Deus.
Na literatura monástica antiga encontramos uma quantidade de acontecimentos fantasiosos: milagres, visões, revelações, que não devem ser interpretados à letra. Em relação a esses acontecimentos não devemos ser nem demasiado crédulos, nem demasiado racionalistas. Pouco importa se os factos foram ou não reais. O importante é olhar a vida que levavam esses homens e mulheres do deserto. Eles sabiam perfeitamente que a salvação não dependia de acções excepcionais ou espectaculares que um ou outro dom permitiam realizar. Quando se perguntou a um abba: “O que é preciso fazer para se ser salvo?” Ele estava ocupado com o seu humilde ofício de cesteiro e respondeu: “Aquilo que estás a ver”.
Estes primeiros monges vinham de todo o lado e de todos os tipos de meios. Para ilustrar esse aspecto vou-vos ler uma história que ajuda a melhor compreender o lado pitoresco das suas vidas (ler “Padres do Deserto” pág. 18)
Para além da oração, as vidas dos Padres do Deserto assentavam sobre outros dois pilares: uma ascese libertadora, e uma caridade efectiva.
A ascese, entendida como uma renúncia voluntária às coisas que nos sabem bem, com vista a uma maior união com Deus é, de facto, um aspecto essencial (que nós, hoje, não valorizamos…). A ascese cola-se à vida deles, de forma tão profunda que os qualifica: chamavam-lhes ascetas. Mas haverá cristianismo autêntico sem renúncia?
O objectivo da ascese consiste em favorecer o desabrochar da vida nova que recebemos no baptismo. Ela contribui para a purificação da nossa alma. Por isso ela é libertadora. A essencialidade da ascese traduz-se neste dito de um abba: “Que ninguém se engane; da mesma forma que a terra não pode dar fruto sem semente nem água, também é impossível para o homem colher frutos sem um trabalho ascético.”
Os Padres do Deserto dedicaram-se corajosamente à ascese do corpo e do espírito. Mas, se ficássemos por aqui, a sua mensagem ficaria perigosamente mutilada. Eles ensinam-nos que a ascese deve ser praticada com humildade, moderação e que não se deve perder de vista a sua razão de ser, que é a caridade. A ascese só é verdadeiramente cristã se deixar transparecer os dons do Espírito Santo, em particular aqueles que estão ligados às relações com os outros, como a amabilidade, a prestabilidade. Um ancião disse: “ O jejum não é nada, a vigília não é nada, todo e qualquer sofrimento não são nada, se a caridade não estiver presente.”
Na verdade, esses homens e mulheres podiam atingir graus de delicadeza extrema uns para com os outros… Cassiano escreve como havia irmãos que se levantavam de noite para executarem às escondidas as tarefas dos outros e aliviá-los, assim, um pouco. Eis outros exemplos de delicadeza na caridade: Dois irmãos faziam o mesmo trabalho; um era muito habilidoso de mãos e o outro nem tanto e acontecia, frequentemente, que não conseguia acabar o objecto que estava a fabricar. Então o primeiro, para que o colega não se sentisse humilhado, também fazia por falhar, de tempos a tempos.
Alguns anciãos foram ao encontro de um abba e disseram-lhe: “Se virmos algum irmão a adormecer durante a, oração, devemos repreendê-lo?” Ele respondeu: “No meu caso, quando vejo um irmão adormecer, coloco a cabeça dele nos meus joelhos e deixo-o descansar”
Um irmão foi visitar o célebre abba Macário. Depois das orações, disse ao ancião: “Pai, há trinta anos que não como carne e continuo a ser tentado a esse respeito”. O ancião respondeu-lhe: “Em vez de me dizeres isso, diz-me: quantos dias passaste sem maldizer o teu irmão, sem julgar o teu próximo?” O irmão prostrou-se e disse: Reza por mim, meu Pai, para que comece hoje”.
Um ancião lembra-nos que a ascese mais difícil é a da língua; aquele que for capaz de dominar esse minúsculo instrumento é um homem perfeito. Os Padres do deserto teriam podido deixar-nos um apotegma do género: Se o corpo está destinado a ser inteiramente transfigurado, a língua será transfigurada em último lugar e não sem pena nossa!
Ainda a propósito da caridade, Cassiano disse dos padres do Egipto que, graças ao trabalho, reuniram grandes quantidades de viveres e dirigiram-nas, seja para regiões onde reinava a fome, seja para as cidades, para aqueles que desfaleciam nos calabouços.
A caridade não consiste somente em dar, mas também na maneira como se dá. Um ancião disse: ”Tudo o que distribuis como esmola, não o dês com dureza e frieza, mas olha o pobre com alegria na alma e com um rosto doce e eleva-o, assim, acima de ti com honra, sabendo que a oferenda ao pobre é do agrado de Cristo e que o Senhor ama aquele que dá com alegria”.
Um apotegma revela, melhor do que grandes teorias, o segredo desta caridade verdadeira. Um irmão tinha duas túnicas, uma boa e uma má. Um estrangeiro foi mendigar para junto dele. Ele deu-lhe a boa e guardou para si a má. Alguém lhe perguntou: “Porque é que não lhe deste a má e ficaste com a boa para ti? Ele respondeu: “Darias a pior a Deus?” Isto significa ver Cristo no irmão.

Foi João Cassiano, que viveu anos com os monges do deserto, nomeadamente o venerado Abade Isaac, que trouxe a tradição monástica para o Ocidente, fundando duas comunidades em Marselha, uma para homens e outra para mulheres. Começou então a anotar tudo aquilo que tinha aprendido com os padres do deserto. Esses escritos e ensinamentos influenciaram muitíssimo o monaquismo, tanto o céltico como o benedictino, divulgando essa forma simples de oração por toda a Europa, até ao tempo da Reforma protestante e da Revolução Francesa, altura em que muitos mosteiros caíram e muitos dos ensinamentos se perderam.
Foi Paulo VI que valorizou de novo a dimensão contemplativa dentro da Igreja. Chamou alguns monges ao Vaticano e pediu-lhes que fossem para fora dos mosteiros e partilhassem esse tipo de prece com as pessoas.

Para os antigos padres da Igreja o objectivo da oração era claramente a divinização. Como dizia S. Basílio “O ser humano é uma criatura que recebeu a vocação de se tornar Deus”. Gregório de Nyssa dizia no séc. IV “A nossa dimensão espiritual está para além da nossa compreensão… por este mistério que nos habita trazemos a marca da divindade invisível”. A Ocidente St. Ireneu afirmava que “A glória de Deus é o ser humano plenamente vivo e a plenitude da vida vem da visão de Deus”

E quase a terminar, gostava de citar alguns textos do livro “Da Oração” de João Cassiano, sobre a oração contínua: págs. 54,80,85,89,100

Diz-se dos Padres do Deserto, que eles foram uns seres tão excepcionais que alcançaram um ponto em que o eu simplesmente havia desaparecido. Por isso, gostava de vos ler uma história bem ilustrativa disso mesmo, e com ela termino (“Ditos e feitos dos Padres do Deserto” pág.235).

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Bibliografia:“Os Padres do Deserto” – Marcel Driot –Ed. Paulus
“Ditos e Feitos dos Padres do Deserto”– Assírio e Alvim
“ Da Oração”- João Cassiano – Ed. Ora e Labora